quarta-feira, 6 de março de 2013

Considerações gerais sobre avaliação no cotidiano escolar


Cipriano Carlos Luckesi[1]

1. Hoje, as provas tradicionais perderam espaço para novas formas de avaliação. Isso significa que elas devem deixar de existir ou devem dividir espaço com as novas atividades?
A questão básica é distinguir o que significam as provas e o que significa avaliação. As provas são recursos técnicos vinculados aos exames e não à avaliação. Importa ter-se claro que os exames são pontuais, classificatórios, seletivos, anti-democráticos e autoritários;  a avaliação, por outro lado, é não pontual, diagnóstica, inclusiva, democrática e dialógica. Como você pode ver, examinar e avaliar são práticas completamente diferentes. As provas (não confundir prova com questionário, contendo perguntas abertas e/ou fechadas; este é um instrumento; provas são para provar, ou seja, classificar e selecionar) traduzem a idéia de exame e não de avaliação. Avaliar significa subsidiar a construção do melhor resultado possível e não pura e simplesmente aprovar ou reprovar alguma coisa. Os exames, através das provas, engessam a aprendizagem; a avaliação a constrói fluidamente.
2. Li algumas reportagens que defendem que o estudante deve ser avaliado durante todo o processo de ensino-aprendizagem. Mas como é esse trabalho?

O ato de avaliar a aprendizagem implica em acompanhamento e reorientação permanente da aprendizagem. Ela se realiza através de um ato rigoroso e diagnóstico e reorientação da aprendizagem tendo em vista a obtenção dos melhores resultados possíveis, frente aos objetivos que se tenha à frente. E, assim sendo, a avaliação exige um ritual de procedimentos, que inclui desde o estabelecimento de momentos no tempo, construção, aplicação e contestação dos resultados expressos nos instrumentos; devolução e reorientação das aprendizagens ainda não efetuadas. Para tanto, podemos nos servir de todos os instrumentos técnicos hoje disponíveis, contanto que a leitura e interpretação dos dados seja feita sob a ótica da avaliação, que é de diagnóstico e não de classificação. O que, de fato, distingue o ato de examinar e o ato de avaliar não são os instrumentos utilizados para a coleta de dados, mas sim o olhar que se tenha sobre os dados obtidos: o exame classifica e seleciona, a avaliação diagnostica e inclui.
3. Como efetivar um acompanhamento individualizado dos alunos diante das condições atuais do ensino?
Para um acompanhamento individualizado dos estudantes, teríamos que ter outras condições materiais de ensino no Brasil. Todavia, importa ter claro que a prática da avaliação funciona tanto com o ensino individualizado como com o ensino coletivo. Avaliação não é sinônimo de ensino individualizado, mas sim de um rigoroso acompanhamento e reorientação das atividades tendo em vista resultados bem-sucedidos. Em minhas conferências, educadores e educadoras sempre levantam essa questão. Todavia é um equívoco pensar que avaliação e individualização do ensino, obrigatoriamente, tem que andar juntas.
4. Muitos professores ainda utilizam a avaliação como uma espécie de "ameaça" aos estudantes, dizendo "isso vale nota, portanto prestem atenção". Quais os prejuízos dessas atitudes tanto para alunos quanto para os próprios professores?
O uso de “ameaças” nas práticas chamadas de avaliação, não tem nada a ver com avaliação, mas sim com exames. Através dos exames, podemos ameaçar “aprovar ou reprovar” alguém; na prática da avaliação, só existe um caminho; diagnosticar e reorientar sempre. A avaliação não é um instrumento de disciplinamento do educando, mas sim um recurso de construção dos melhores resultados possíveis para todos. A avaliação exige aliança entre educador e educandos; os exames conduzem ao antagonismo entre esses sujeitos, daí a possíbilidade da ameaça.
5. Por que alguns educadores são tão resistentes às mudanças?
São três a principais razões. A razão psicológica (biográfica, pessoal) tem a ver com o fato de que os educadores e as educadoras foram educados assim. Repetem automaticamente, em sua prática educativa, o que aconteceu com eles. Em segundo lugar, existe a razão histórica, decorrente da própria história da educação. Os exames escolares que praticamos hoje foram sistematizados no século XVI pelas pedagogias jesuítica e comeniana. Somos herdeiros desses modelos pedagógicos, quase que de forma linear. E, por último, vivemos num modelo de sociedade excludente e os exames expressam e reproduzem esse modelo de sociedade. Trabalhar com avaliação implica em ter um olhar includente, mas a sociedade é excludente. Daí uma das razões das dificuldades em mudar.
6. O que o professor precisa mudar na sua concepção de avaliação para desenvolver uma prática avaliativa mediadora?
Necessita de compreender o que é avaliar e, ao mesmo tempo, praticar essa compreensão no cotidiano escolar. Repetir conceitos de avaliação é uma atitude simples e banal; o difícil é praticar a avaliação. Isso exige mudanças internas do educador e do sistema de ensino.
7. Muito se fala sobre o futuro da avaliação, mas muitos educadores ainda não mudaram a maneira de encarar o ensino e a aprendizagem. Mudar apenas a avaliação não seria uma forma de mascarar o problema?
Se um educador se propuser a modificar seu modo de avaliar, obrigatoriamente terá que modificar o seu modo de compreender a ação pedagógica. A avaliação não existe em si e por si; ela subsidia decisões dentro de um determinado contexto. No nosso caso, o contexto pedagógico. Os exames são recursos adequados ao projeto pedagógico tradicional; para trabalhar com avaliação necessitamos de estar vinculados a um projeto pedagógico construtivo (o que não quer dizer construtivista ou piagetiano; segundo esse meu modo de ver, nesse caso, a pedagogia do Prof. Paulo Freire é construtiva, trabalha com o ser humano inacabado, em processo).
8. Qual o verdadeiro objetivo de uma avaliação?
Subsidiar a construção dos melhores resultados possíveis dentro de uma determinada situação. O ato de avaliar está a serviço dessa busca.
9. Muito se fala da avaliação e de como o professor deve lidar com ela, mas muitas vezes se esquece do aluno. Qual o verdadeiro valor da avaliação para o estudante?
A questão volta novamente ao mesmo lugar. Sua pergunta tem a ver com o conceito de examinar. O ato de avaliar sempre inclui o estudante, pois que ele é o agente de sua formação; só ele se forma. O papel do educador é acolher o educando, subsidiá-lo em seus estudos e aprendizagens, confrontá-lo reorientando-o em suas buscas.
10. A sociedade ainda é muito "apegada" a notas, reprovação, escola fraca ou forte. Como fica a relação com os pais acostumados com essas palavras quando a escola utiliza outras formas de avaliação?
Assim como os educadores, os pais foram educados em outras épocas e sob a égide dos exames. Para que possam olhar para a educação de seus filhos com um outro olhar necessitam de ser reeducados continuamente. Para isso, devem servir as reuniões de pais e mestres, que usualmente tem servido quase que exclusivamente para comentar como as crianças e adolescentes estão se desempenhando em seus estudos. Por outro lado, o sistema de avaliação a ser apresentado para os pais deve ser consistente. Por vezes, pode parecer que “avaliar” significa “qualquer coisa”. Não é e não pode ser isso. Avaliar é um rigoroso processo de subsidiar o crescimento dos educandos. 
11. Em muitas escolas, por mais que se tenha uma concepção de educação e de avaliação mais "avançada", elas acabam sendo obrigadas a transformar todos esses conceitos em nota. Como é que o professor pode medir o desempenho de seus alunos se, em nenhum momento, deve ser feita essa medição de um somatório?
Um processo verdadeiramente avaliativo é construtivo. Ao final de um período de acompanhamento e reorientação da aprendizagem, o educador poder testemunhar a qualidade do desenvolvimento de seu educando, registrando esse testemunho. A nota serve somente como forma de registro e um registro é necessário devido nossa memória viva ser muito frágil para guardar tantos dados, relativos a cada um dos estudantes. Não podemos nem devemos confundir registro com processo avaliativo; uma coisa é acompanhar e reorientar a aprendizagem dos educandos outra coisa é registrar o nosso testemunho desse desempenho.
12. O que uma escola precisa desenvolver para construir uma cultura avaliativa mediadora?
Para desenvolver uma cultura da avaliação os educadores e a escola necessitam de praticar a avaliação e essa prática realimentará novos estudos e aprofundamentos de tal modo que um novo entendimento e um novo modo de ser vai emergindo dentro de um espaço escolar. O que vai dar suporte à mudança é a prática refletida, investigada.
13. Na sua opinião, qual será o futuro da avaliação no país? O que seria ideal?
O futuro da prática da avaliação da aprendizagem no país é aprendermos a praticá-la tanto do ponto de vista individual de nós educadores, assim como do ponto de vista do sistema e dos sistemas de ensino. Avaliação não virá por decreto, como tudo o mais na vida. A avaliação emergirá solidamente da prática refletida diuturna dos educadores. Uma última coisa que gostaria de dizer aos educadores: vamos substituir o nome “aluno” por estudante ou educando. O termo aluno, segundo os filólogos, vem do verbo alere, do latim, que significa alimentar; porém, existe uma forma de leitura desse termo mais popular e semântica do que filológica que diz que “aluno” significa “aquele que não tem luz” e que teria sua origem também no latim, da seguinte forma: prefixo “a” (=negação) e “lummen” (=luz).  Gosto dessa segunda versão, certamente, não correta do ponto de vista filológico, mas verdadeira do ponto de vista da prática cotidiana de ensinar. Nesse contexto de entendimento, agindo com nossos educandos como seres “sem luz”, só poderemos praticar uma pedagogia depositária, bancária..., como sinalizou o prof. Paulo Freire. Nunca uma pedagogia construtiva. Dai também, dificilmente, conseguiremos praticar avaliação, pois que esta está voltada para o futuro, para a construção permanente daquilo que é inacabado.



[1] Entrevista concedida à Aprender a Fazer, publicada em IP – Impressão Pedagógica, publicação da Editora Gráfica Expoente, Curitiba, PR, nº 36, 2004, p. 4-6.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Nenhum comentário:

Postar um comentário