Cipriano
Carlos Luckesi[1]
1.
Hoje, as provas tradicionais perderam espaço para novas formas de avaliação.
Isso significa que elas devem deixar de existir ou devem dividir espaço com as
novas atividades?
A
questão básica é distinguir o que significam as provas e o que significa
avaliação. As provas são recursos técnicos vinculados aos exames e não à
avaliação. Importa ter-se claro que os exames são pontuais, classificatórios,
seletivos, anti-democráticos e autoritários;
a avaliação, por outro lado, é não pontual, diagnóstica, inclusiva,
democrática e dialógica. Como você pode ver, examinar e avaliar são práticas
completamente diferentes. As provas (não confundir prova com questionário,
contendo perguntas abertas e/ou fechadas; este é um instrumento; provas são
para provar, ou seja, classificar e selecionar) traduzem a idéia de exame e não
de avaliação. Avaliar significa subsidiar a construção do melhor resultado
possível e não pura e simplesmente aprovar ou reprovar alguma coisa. Os exames,
através das provas, engessam a aprendizagem; a avaliação a constrói
fluidamente.
2.
Li algumas reportagens que defendem que o estudante deve ser avaliado durante
todo o processo de ensino-aprendizagem. Mas como é esse trabalho?
O
ato de avaliar a aprendizagem implica em acompanhamento e reorientação
permanente da aprendizagem. Ela se realiza através de um ato rigoroso e
diagnóstico e reorientação da aprendizagem tendo em vista a obtenção dos
melhores resultados possíveis, frente aos objetivos que se tenha à frente. E,
assim sendo, a avaliação exige um ritual de procedimentos, que inclui desde o
estabelecimento de momentos no tempo, construção, aplicação e contestação dos
resultados expressos nos instrumentos; devolução e reorientação das
aprendizagens ainda não efetuadas. Para tanto, podemos nos servir de todos os
instrumentos técnicos hoje disponíveis, contanto que a leitura e interpretação
dos dados seja feita sob a ótica da avaliação, que é de diagnóstico e não de classificação.
O que, de fato, distingue o ato de examinar e o ato de avaliar não são os
instrumentos utilizados para a coleta de dados, mas sim o olhar que se tenha
sobre os dados obtidos: o exame classifica e seleciona, a avaliação diagnostica
e inclui.
3.
Como efetivar um acompanhamento individualizado dos alunos diante das condições
atuais do ensino?
Para
um acompanhamento individualizado dos estudantes, teríamos que ter outras
condições materiais de ensino no Brasil. Todavia, importa ter claro que a prática
da avaliação funciona tanto com o ensino individualizado como com o ensino
coletivo. Avaliação não é sinônimo de ensino individualizado, mas sim de um
rigoroso acompanhamento e reorientação das atividades tendo em vista resultados
bem-sucedidos. Em minhas conferências, educadores e educadoras sempre levantam
essa questão. Todavia é um equívoco pensar que avaliação e individualização do
ensino, obrigatoriamente, tem que andar juntas.
4.
Muitos professores ainda utilizam a avaliação como uma espécie de "ameaça"
aos estudantes, dizendo "isso vale nota, portanto prestem atenção".
Quais os prejuízos dessas atitudes tanto para alunos quanto para os próprios
professores?
O
uso de “ameaças” nas práticas chamadas de avaliação, não tem nada a ver com
avaliação, mas sim com exames. Através dos exames, podemos ameaçar “aprovar ou
reprovar” alguém; na prática da avaliação, só existe um caminho; diagnosticar e
reorientar sempre. A avaliação não é um instrumento de disciplinamento do
educando, mas sim um recurso de construção dos melhores resultados possíveis
para todos. A avaliação exige aliança entre educador e educandos; os exames
conduzem ao antagonismo entre esses sujeitos, daí a possíbilidade da ameaça.
5.
Por que alguns educadores são tão resistentes às mudanças?
São
três a principais razões. A razão psicológica (biográfica, pessoal) tem a ver
com o fato de que os educadores e as educadoras foram educados assim. Repetem
automaticamente, em sua prática educativa, o que aconteceu com eles. Em segundo
lugar, existe a razão histórica, decorrente da própria história da educação. Os
exames escolares que praticamos hoje foram sistematizados no século XVI pelas
pedagogias jesuítica e comeniana. Somos herdeiros desses modelos pedagógicos,
quase que de forma linear. E, por último, vivemos num modelo de sociedade
excludente e os exames expressam e reproduzem esse modelo de sociedade.
Trabalhar com avaliação implica em ter um olhar includente, mas a sociedade é
excludente. Daí uma das razões das dificuldades em mudar.
6.
O que o professor precisa mudar na sua concepção de avaliação para desenvolver
uma prática avaliativa mediadora?
Necessita
de compreender o que é avaliar e, ao mesmo tempo, praticar essa compreensão no
cotidiano escolar. Repetir conceitos de avaliação é uma atitude simples e
banal; o difícil é praticar a avaliação. Isso exige mudanças internas do
educador e do sistema de ensino.
7.
Muito se fala sobre o futuro da avaliação, mas muitos educadores ainda não
mudaram a maneira de encarar o ensino e a aprendizagem. Mudar apenas a
avaliação não seria uma forma de mascarar o problema?
Se
um educador se propuser a modificar seu modo de avaliar, obrigatoriamente terá
que modificar o seu modo de compreender a ação pedagógica. A avaliação não
existe em si e por si; ela subsidia decisões dentro de um determinado contexto.
No nosso caso, o contexto pedagógico. Os exames são recursos adequados ao
projeto pedagógico tradicional; para trabalhar com avaliação necessitamos de
estar vinculados a um projeto pedagógico construtivo (o que não quer dizer
construtivista ou piagetiano; segundo esse meu modo de ver, nesse caso, a
pedagogia do Prof. Paulo Freire é construtiva, trabalha com o ser humano
inacabado, em processo).
8.
Qual o verdadeiro objetivo de uma avaliação?
Subsidiar
a construção dos melhores resultados possíveis dentro de uma determinada
situação. O ato de avaliar está a serviço dessa busca.
9.
Muito se fala da avaliação e de como o professor deve lidar com ela, mas muitas
vezes se esquece do aluno. Qual o verdadeiro valor da avaliação para o
estudante?
A
questão volta novamente ao mesmo lugar. Sua pergunta tem a ver com o conceito
de examinar. O ato de avaliar sempre inclui o estudante, pois que ele é o
agente de sua formação; só ele se forma. O papel do educador é acolher o
educando, subsidiá-lo em seus estudos e aprendizagens, confrontá-lo
reorientando-o em suas buscas.
10.
A sociedade ainda é muito "apegada" a notas, reprovação, escola fraca
ou forte. Como fica a relação com os pais acostumados com essas palavras quando
a escola utiliza outras formas de avaliação?
Assim
como os educadores, os pais foram educados em outras épocas e sob a égide dos
exames. Para que possam olhar para a educação de seus filhos com um outro olhar
necessitam de ser reeducados continuamente. Para isso, devem servir as reuniões
de pais e mestres, que usualmente tem servido quase que exclusivamente para
comentar como as crianças e adolescentes estão se desempenhando em seus
estudos. Por outro lado, o sistema de avaliação a ser apresentado para os pais
deve ser consistente. Por vezes, pode parecer que “avaliar” significa “qualquer
coisa”. Não é e não pode ser isso. Avaliar é um rigoroso processo de subsidiar
o crescimento dos educandos.
11.
Em muitas escolas, por mais que se tenha uma concepção de educação e de
avaliação mais "avançada", elas acabam sendo obrigadas a transformar
todos esses conceitos em nota. Como é que o professor pode medir o desempenho
de seus alunos se, em nenhum momento, deve ser feita essa medição de um
somatório?
Um
processo verdadeiramente avaliativo é construtivo. Ao final de um período de
acompanhamento e reorientação da aprendizagem, o educador poder testemunhar a
qualidade do desenvolvimento de seu educando, registrando esse testemunho. A
nota serve somente como forma de registro e um registro é necessário devido
nossa memória viva ser muito frágil para guardar tantos dados, relativos a cada
um dos estudantes. Não podemos nem devemos confundir registro com processo
avaliativo; uma coisa é acompanhar e reorientar a aprendizagem dos educandos
outra coisa é registrar o nosso testemunho desse desempenho.
12.
O que uma escola precisa desenvolver para construir uma cultura avaliativa
mediadora?
Para
desenvolver uma cultura da avaliação os educadores e a escola necessitam de
praticar a avaliação e essa prática realimentará novos estudos e
aprofundamentos de tal modo que um novo entendimento e um novo modo de ser vai
emergindo dentro de um espaço escolar. O que vai dar suporte à mudança é a
prática refletida, investigada.
13.
Na sua opinião, qual será o futuro da avaliação no país? O que seria ideal?
O futuro da prática da
avaliação da aprendizagem no país é aprendermos a praticá-la tanto do ponto de
vista individual de nós educadores, assim como do ponto de vista do sistema e
dos sistemas de ensino. Avaliação não virá por decreto, como tudo o mais na
vida. A avaliação emergirá solidamente da prática refletida diuturna dos
educadores. Uma última coisa que gostaria de dizer aos educadores: vamos
substituir o nome “aluno” por estudante ou educando. O termo aluno, segundo os
filólogos, vem do verbo alere, do
latim, que significa alimentar; porém, existe uma forma de leitura desse termo
mais popular e semântica do que filológica que diz que “aluno” significa
“aquele que não tem luz” e que teria sua origem também no latim, da seguinte
forma: prefixo “a” (=negação) e “lummen” (=luz). Gosto dessa segunda versão, certamente, não
correta do ponto de vista filológico, mas verdadeira do ponto de vista da
prática cotidiana de ensinar. Nesse contexto de entendimento, agindo com nossos
educandos como seres “sem luz”, só poderemos praticar uma pedagogia
depositária, bancária..., como sinalizou o prof. Paulo Freire. Nunca uma
pedagogia construtiva. Dai também, dificilmente, conseguiremos praticar avaliação,
pois que esta está voltada para o futuro, para a construção permanente daquilo
que é inacabado.
[1]
Entrevista concedida à Aprender a Fazer,
publicada em IP – Impressão Pedagógica,
publicação da Editora Gráfica Expoente, Curitiba, PR, nº 36, 2004, p. 4-6.
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