quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Efeito Colateral
Autor: Alberto Grimm[1]

dinheiro
Cometer um erro é relativamente fácil, permanecer nele, mais ainda... 
Depois das muitas mudanças na genética de tudo que era ser vivo sobre a terra, muitas coisas aconteceram. Novas espécies animais surgiram. No principio eram apenas animais feitos “sob encomenda” para as crianças. Sim, a moderna ciência era capaz de criar, por exemplo, um animalzinho novo, como nos joguinhos de computador, onde as crianças misturavam os pedaços, as partes, de diferentes espécimes, para dar origem a algo bizarro, ou engraçado, como diziam.

Agora eles podiam fazer isso com animais de verdade. Era simples, bastava chegar no balcão de uma das lojas credenciadas, e solicitar o animal desejado, por mais estranho e improvável que parecesse. A própria criança podia desenhar o modelo em um dos simuladores disponíveis para isso. Em dois dias estava pronto, já no tamanho grande, escolhido pelo cliente.
E por um bom tempo, o sonho de consumo entre as crianças era um modelo que falava e lia contos para elas dormirem. Era a sensação das maciças campanhas publicitárias, que convocavam as crianças a terem um. Seus olhos eram de gato, o que era ideal para ler no escuro. Sua voz era humana, suave, como a voz de um grande orador, ou oradora, ajustada especialmente para os sensíveis ouvidos infantis. Seus dedos aveludados, assim podiam acariciar os pequenos fazendo um temporário papel de mãe ou babá.

Use sua imaginação e lá estava o animal correspondente. E se espalharam sobre a terra, e se multiplicaram, dando origem a outras tantas espécies exóticas. Para aqueles que não gostavam de animais, mas apenas das suas carnes, era possível criar espécimes apenas para o corte, de acordo com o gosto de cada um. Podia ser com diferentes sabores, ou já temperados, e assim por diante.

Não havia um limite estabelecido onde a ciência pudesse afirmar: “Aqui nós paramos. Desse ponto em diante não é possível prosseguir.” E tudo era feito para servir ao novo homem. Este, aliás, modificado geneticamente, de modo a não padecer mais de nenhuma doença. O que no principio fora um grande problema para os médicos, e políticos, e todos aqueles, que não mais podiam se promover motivados pelo caos na saúde ou sofrimento daquele povo. Sem falar no prejuízo das grandes corporações farmacêuticas.

Estas, aliás, deram a volta por cima, e agora dominavam o império das mudanças genéticas. Dinheiro, ganhavam agora mais do que no tempo das grandes doenças, das pandemias, onde a desarmonia predominava, o que fazia os saudosistas do caos verterem lágrimas verdadeiras. “Bons tempos das grandes pragas, dos bajuladores, quando nos idolatravam em busca de conforto; das doenças crônicas, quando sabíamos que nossa medicação, além de não curar, criava dependentes. Dependentes que eram fiéis, e sempre voltavam espontaneamente às farmácias e postos de saúde. Nossa, que saudade...”

E os animais ganharam inteligência. Sensatez não, afinal eles tiveram como professores os humanos. E mudaram também os insetos, e mesmo os espécimes virais. Mas a história não poderia ter sido escrita de outra forma. Com o aumento da expectativa de vida para um patamar quase infinito, logo todos se perguntavam se o paraíso não seria algo semelhante a aquilo que ora já experimentavam, na terra.

Sendo assim, não precisava ninguém se mudar, quer dizer, morrer para usufruir de tal benesse. Se mudar para quê, se ali já estava tudinho? Tudo que se poderia esperar de um paraíso, e ao vivo, literalmente falando, e podendo ser usufruído imediatamente, sem obrigações, sem taxas, sem esforço, ou idolatrias, ou penitências de nenhuma espécie.

Sem objetivos, com uma sobrevida quase interminável pela frente, encontrar coisas para se manter ocupado, se tornara o grande problema de todas as nações. E achar maneiras criativas para preencher um longo e tedioso dia, torna-se a única motivação daquela humanidade. Por isso tudo era permitido.

E Ninguém mais adoecia, nem precisava tomar remédio, nem se curvar aos deuses para se obter cura ou saúde, ou bens materiais, afinal isso já se possuía, de berço, sem obrigação nenhuma a cumprir. E o imenso tédio de se viver centenas de anos, sem a promessa de um paraíso a lhes esperar em lugar incerto, e sempre repetindo as mesmas coisas, levou esse homem à insensatez, e da insensatez à total destruição.

Por isso sobraram apenas os escombros das grandes cidades, e as cinzas das grandes florestas, e o deserto de pedregulhos e lama onde antes existiam os mares e as águas límpidas.

Explorando aquele ambiente sabidamente hostil, que restara, onde o perigo poderia estar à espreita dos descuidados, o explorador se deteve no alto da colina e observou pacientemente o cenário desolado, misterioso, silencioso, que não exibia o real perigo oculto em suas sombras; sombras que, como espectros fantasmagóricos de uma alucinação, se erguiam impassíveis, diante de si.

Ali já fora uma grande e próspera cidade. Milhares de pessoas a circularem em suas largas e suntuosas ruas, e lojas, despreocupadas e imersas em seus mundos particulares, indiferentes, a consumirem qualquer coisa, como autômatos programados, até que o dia “X” chegara sem prévio aviso. E apenas os escombros chamuscados em contraste com aquele céu sempre cinzento, sem expressão, era o que agora se via. Quem, dos dias de glória imaginaria aquele final como ponto de chegada para aquela avançadíssima civilização?

E o explorador conhecia bem toda história. Afinal, seus ancestrais viveram entre aqueles habitantes. Foram concebidos a partir da sua ciência. Lembrou das antigas escrituras, onde o homem dito civilizado, que exaltava sua compaixão para com a vida, desprezava os animais ao tê-los como fonte preferida de sua alimentação. Aliás, essa sempre fora uma questão que pessoalmente o incomodara por uns tempos. Se aquele homem dizia prezar pela vida, por que desprezava a vida dos demais seres vivos? Lembrou que isso fora assunto para sua tese de doutorado.

Do ponto de observação onde estava, pode ver se esgueirando entre as sombras, um dos seres híbridos, este meio homem, meio verme, uma espécie natural, uma evolução do próprio homem bárbaro que restara após a destruição. Como a genética de ambos, verme e homem eram semelhantes, fora uma questão de adaptação, um processo seletivo natural, sua adaptabilidade ao novo e inóspito ambiente. Assim surgira o “Homus-rasterus”, uma temível espécie predadora de todos os outros animais.

Tratava-se de um inimigo natural de todos, até de si próprio, por isso todo cuidado com ele era pouco. Mas, era pouco inteligente, a exemplo do seu antecessor. Preocupava-se apenas em caçar e depois comemorar suas conquistas, sem se preocupar com o dia seguinte. Particularmente, pensava o observador, aquela espécie era uma ameaça ao equilíbrio de qualquer mundo que prezasse pela harmonia. Por isso deveriam ser mapeados para depois serem isolados dos demais. E esse, naquele momento, como observador, era seu papel.

Felizmente, graças às mesmas mudanças genéticas responsáveis por tudo que acontecera, agora a raça predominante naquele mundo era outra. Um novo “ser”. Mais respeitador do seu próximo, mais coerente em seus princípios morais. Lembrou que antes do “grande dia” ele fora um subjugado do poderio e crueldade dos antigos habitantes, os humanos, servindo apenas como material para suas pesquisas. Ele, um simples Rato Branco, agora com maior capacidade intelectual, maior que a dos antigos dominadores.

Com maior estatura, caminhando sobre duas pernas, com mãos e braços plenamente desenvolvidos, sem rabo e com um rosto de aspecto humano infantil, deixara de rastejar desde tempos imemoriais. Caminho inverso ao que seguiu seu antigo dominador.

Sem perder mais tempo, transmitiu à sua base o local que deveria ser considerado de alto risco para os seus, uma vez que a presença do temível “Homus-rasterus”, fora ali detectada.


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